Incansável: Mais de 200 mil km e mil corridas depois, Pangaré faz 50 anos

21/10/2016 10:21

Carioca, que adotou o Ceará, participa pela quarta vez de maratona no deserto
de Israel. Um dos feitos do atleta foi dar a volta na capital Fortaleza em um dia.

 

Sabe aqueles cinco quilômetros que você, corredor amador, encara no final de semana? Se está há mais tempo nessa vida de atleta, um percurso de 10 km talvez seja mais desafiador. É mais ousado? Ok. Que tal uma meia-maratona? Pouco? É capaz de completar uma inteira? Acredite. Tem que corra muito, mas muito mais que isso. Prestes a completar 50 anos, Fernando Pangaré é um daqueles atletas que desafia (às vezes até demais) os limites do próprio corpo. Em forma, ele irá comemorar o aniversário na Maratona de Israel. Para quem não conhece, o percurso passa pelo deserto. Acha pouco?

Ele já deu a volta em Fortaleza em um dia. Já correu várias provas de 24 horas. Outras tantas de 100 km. Uma única vez participou de uma competição que durou 48 horas. Achou muito até mesmo para si. Resolveu ficar apenas nas que duravam um dia. As histórias serão todas reunidas em um livro a ser escrito pelo próprio corredor. Antes disso, conheça um pouco do carioca que abraçou o Ceará e ganhou o mundo do jeito que ele mais gosta: correndo.

Haja aventura

É difícil escolher o filho predileto. Impossível, na verdade. Com a boa memória de quem viveu cada um dos relatos, Pangaré listou, um a um, tudo o que aconteceu desde que começou a correr. À época, o calendário de 1980 denunciava os 13 anos do adolescente. Os primeiros passos dos primeiros milhares de quilômetros a serem percorridos foram dados. A primeira corrida oficial ocorreu aos 15 anos. Sete modestos quilômetros suados, sofridos por alguém que se aventurou no mundo da corrida sem a estrutura necessária. Tênis próprio para a prática do exercício não havia. 

Entre Gaza e Israel, ultramaratonista é único brasileiro em prova no deserto

Aos 16 anos, entrou para a primeira equipe de atletismo. Provas de 10km eram tranquilas para o jovem Fernando. Ingressou na Marinha do Brasil com a esperança de que as portas se abrissem para o atletismo que ele tanto queria. No entanto, foi na equipe de corrida rústica da UFRJ que tudo andou melhor. Em 1991, o atleta foi a um Encontro Universitário no Ceará e conheceu a futura esposa. Resolveu tentar a sorte no município de Acaraú, distante 255 km de Fortaleza. Durou pouco tempo até ter a certeza de que a vida seria melhor na Capital. Abraçou a cidade e foi abraçado por ela. Tanto que em 2010 resolveu dar a volta em Fortaleza. Correndo. Em celebração aos próprios 30 anos de corrida. Em sete horas meia, correu quase 70 km pela cidade. 


- Muitos me disseram que não ia dar certo, que não daria tempo, que eu não ia conseguir. No final, corri 69,9 km em 7h28min - pontuou.

O atleta soma mais de mil competições em toda a carreira. Em todas elas, apenas um abandono de prova. Em 1989 fez duas maratonas. No Mato Grosso do Sul, o caminho saía de Fátima do Sul até Dourados. No km 33, Pangaré "paralisou". Mas o corredor aprendeu com o erro.

- O erro tinha sido o seguinte. Você modula o treinamento para o atleta fazer o ápice na competição. Durante a prova. Antes você corre aquém da capacidade. Mas uma semana antes eu tinha feito uma meia-maratona no Espírito Santo. Eu estava no limite. Cheguei quebrado para a prova. Porque eu sempre erro para mais, sempre para cima. Já tive vários processos de overtrainning - comentou. Entre 1996 e 2001, Pangaré fez um "jejum forçado". Sem patrocinador, o atleta não teve como disputar competições oficiais, mesmo assim, não deixou de treinar. A ultramaratona entrou na vida do carioca em 2002, em Rio Grande-RS: 50 km em 4h26min. A primeira corrida 24 horas foi em Salvador: 149 km. Haja fôlego!


- Historicamente, eu tinha que construir uma linha de ação para seguir de pé. As pessoas diziam que eu ia abandonar, que eu ia parar de competir. O atleta, quando envelhece, ele tende a ir para a zona de conforto. Eu fiz o contrário. Em 2002, eu tinha 22 anos de corrida. Abandonei a maratona e fui para a ultramaratona.

Se no Brasil a situação não é boa, como lamenta Pangaré, no exterior, o tratamento dado ao ultramaratonista é de primeira linha.

- Em Israel eles me tratam como eu mereço. Lá me pegam no aeroporto, pagam tudo. Eu não tenho um gasto. Na Espanha, eu fiquei em hotel cuja diária era muitos euros. Corri oito vezes na Argentina e nunca paguei uma diária de hotel. No Brasil, tem ultramaratona que cobra inscrição de R$ 2 mil - afirmou.

Pangaré é religioso. Sustenta o discurso de que para fazer o que ele faz, não é possível fazer sozinho. Uma mínima base espiritual é necessária. Imagine você encarar o desafio de correr durante 24 horas seguidas. Ou correr uma distância de 100 km. Por melhor que seja os eu preparo físico, uma hora as pernas faltam. 

- Você faz com as pernas aquilo que os normais não fazem nem de carro. Se você não tiver essa base espiritual, você não aguenta. Vou dar um exemplo. Ano passado, em Israel corri 100 km. Fazer isso longe da família é a morte. Quando eu estava no km 84, eu estava morto. Orei sob um sol de 50°C e, de repente, veio uma força extra e comecei a me levantar. Cruzei a linha de chegada sem reclamar. Chorei a prova toda. Mas cruzei a linha de chegada bem. E aí tu vai dizer que não tem Deus na parada? Que foi o Pangaré que fez tudo isso sozinho? Não pode, né - explicou.Pode não parecer, mas Pangaré sabe os limites do próprio corpo. Sabe que a hora de parar se aproxima a cada quilômetro rodado. Continuar correndo? Sim, claro. Até onde o corpo permitir. Lamenta não ter preparado nenhum discípulo, como ele mesmo frisa. Para os anos que se apresentam cada vez mais próximos, o objetivo é concluir a graduação em educação física e trabalhar com atletismo. Mas com um norte específico: as provas de grande distância.


- Falar em prazo de validade é complicado. Você olhar e assumir que está chegando a hora de parar é difícil. Para quem tem 50 anos e corre desde os 13, os 50 anos acabam se tornando quase 100. Hoje eu faço chorando coisas que eu antes fazia sorrindo - concluiu.

A maratona de Israel ocorre neste 21 de outubro. Esta será a quarta participação do carioca Fernando Pangaré na corrida que refaz os passos do primeiro maratonista que correu 42 km partindo do campo de batalha em Eben Ezer (na era moderna Rosh Ha’ayin) para Siló.